Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem
mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão
quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram
raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade
poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno.
Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele. João
Grande acreditava era em Xangô, em Omulu, nos deuses dos negros que vieram da
África. O Querido-de-Deus, que era um pescador valente e um capoeirista sem
igual, também acreditava neles, misturava-os com os santos dos brancos que
tinham vindo da Europa. O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição,
que era coisa errada, mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na
beleza do dia. Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de
fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava.
E no inferno havia martírios desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no
reformatório de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que
descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e
mulheres recebias as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade
era vermelho e do seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o
inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram
lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se
entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade
era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José
Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema
justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora
vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino
abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase
diários, das mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia
Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom
(mas não tão justo também…) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia.
Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida…
Jorge Amado, in Capitães da Areia